As Incríveis Aventuras de Arsène Lupin, Assaltante Elegante
Observação (PT-BR): a tradução foi toda feita sem usar a letra O.
Note (EN): the whole translation was written without using the letter O.
Prefácio
(English preface available after the Portuguese text/prefácio em inglês disponível depois do texto em português)
Na LocJAM 6, uma tradutora italiana chamada Chiara Di Modica entregou alguns projetos “diferentes”. O que eu achei mais legal foi uma tradução rimada. Infelizmente, meu nível de italiano não me permite aproveitar ao máximo o jogo traduzido, mas achei a ideia genial, e isso me inspirou a também fazer um projeto “diferente” pra essa LocJAM Crime Story.
Não queria fazer a tradução rimada para não copiar a mesma ideia, então pensei em usar algum outro tipo de restrição de escrita. Pensei naquele texto que tem na internet, de autor desconhecido, que é todo escrito com palavras iniciadas em P (“Pedro Paulo Pereira Pinto, pequeno pintor português, pintava portas, paredes, portais [...]”). Mas achei que, independente da letra que eu escolhesse, seria uma tarefa quase impossível, considerando que não vou partir de um texto 100% original, mas vou ficar “limitado” à história original.
Então, lembrei de “La Disparition”, de Georges Perec, publicado em 1969. Curiosamente, também é um livro de detetive/investigação. A primeira vez que ouvi falar desse livro foi num evento da Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes (ABRATES). O autor escreveu um livro inteiro com uma restrição muito complicada: ele não usou a letra E, a mais frequente da língua francesa. O livro foi traduzido para várias línguas, e alguns tradutores mantiveram a ausência do E, outros trocaram por outras vogais, como A e O. A tradução brasileira, de Zéfere (José Roberto Andrade Féres), publicada em 2021, também retira a letra E.
Ok, escolhi a minha restrição. Agora preciso escolher a vogal eliminada. Depois de analisar várias possibilidades e palavras que eu “perderia”, decidi escolher a letra E, assim como Georges Perec e Zéfere. Mas, quando divulgaram o material original da LocJAM, me deparei com o primeiro desafio. Seria um texto chamado “The Extraordinary Adventures of Arsène Lupin, Gentleman-burglar” (eu traduzi do inglês), um clássico da literatura policial/de investigação. O problema é que tem dois Es no nome do personagem.
Eu até tentei começar a tradução sem a letra E, as aventuras passaram a ser fora do comum, em vez de extraordinárias, e o personagem virou Arnauld Lupin. Mas me incomodava muito mudar o nome de um personagem tão importante, um clássico da literatura mundial. Então, decidi recomeçar a tradução e escolher a letra O, única vogal que não aparecia no nome de Arsène Lupin. Assim, as aventuras extraordinárias, que tinham virado fora do comum, passaram a ser incríveis.
Foi um texto muito difícil de fazer, e achei ótimo que a LocJAM tenha colocado um prazo maior dessa vez. Na edição 6, eram 4 dias para traduzir umas 3.500 palavras, e agora foram 14 dias para 4.500. Acho que eu não teria conseguido fazer em 4 dias. Afinal, só para fazer a tradução, levei 8, sem contar a revisão, implementação, etc.
Os desafios de fazer um texto desses sem a letra O são gigantes. De primeira, eu já perco várias palavras: você, pessoa, homem, ladrão, roubar, porque, por, o, do, pois, porém, portanto, então, depois, tempo, hora, ano, dois. Também perdi a maioria dos substantivos e adjetivos masculinos. Foi difícil achar um jeito de traduzir o “gentleman-cabrioleur”, como Arsène Lupin é conhecido. Eu não podia usar ladrão, larápio, bandido, gatuno, criminoso... E a história quase toda se passa dentro de um barco, mas eu não podia escrever barco, navio, cruzeiro, embarcação, transatlântico, veículo, transporte, etc.
Para todos esses desafios, eu tinha que dar um jeito. Às vezes, uma palavra menos usual. Em outros casos, uma reconstrução da frase, falar a mesma coisa de outro jeito, dar uma volta, modular outro ponto de vista. As soluções foram bem diversas. Não fiquei plenamente satisfeito com todas, mas fiz o que consegui fazer.
Outro problema que tive foi com os tempos verbais. Perdi a primeira pessoa do singular do presente do indicativo, perdi todos os particípios e perdi muitas outras conjugações. Para a terceira pessoa do singular de vários verbos, que acabariam usando a letra O, resolvi usando a segunda pessoa, tratando todos os personagens como “tu”. Assim, “falou”, por exemplo, vira “falaste”, e eu passo a ter um problema a menos.
Vários nomes próprios também foram difíceis, mas não me incomodei de alterar, já que não eram nomes tão icônicos. Fiquei feliz de não precisar mudar Ganimard e aproveitei para fazer uns jogos de palavra com os nomes originais. Assim, Rivolta virou Rivai, Rozaline passou a ser Azuline, Miss Nelly Underdown agora era lady Nelly Underup. O major Rawson foi promovido a general Rawfather. E o marquês de Raverdan foi transferido para Rakerdan, só pra eu usar todas as letras (tirando o O).
Esse projeto só foi possível porque eu adotei esse nível de liberdade, de não apenas traduzir, mas transcriar o texto original, o que fazia parte da proposta do concurso. Assim, Arsène Lupin não se disfarçava mais de médico russo e de toureiro espanhol, mas de dentista inglês e atleta belga. Os suspeitos não eram treze, com nove sendo eliminados da lista, e sim dezessete, com treze sendo inocentados logo (sim, também não usei nenhum O dentro de números). O barão Schormann virou o duque Schermann, Nelly ia pra New Jersey, não mais para Chicago, e Azuline não era o filho de um mercador rico de Bordeaux, mas de uma família rica de Lille.
No final, achei engraçado que as restrições me fizeram escrever menos e reduzir algumas cenas, ser mais sintético. O “normal” é que um texto aumente quando é traduzido de inglês para português, mas o meu ficou com cerca de 80% do tamanho. E a letra O foi a única que não foi usada. Só para comparação, o texto final teve algumas ocorrências de K (3), W (4) e Y (59), as três menos frequentes da língua portuguesa.
As restrições foram adotadas apenas no texto e no título. Toda a parte editorial no início ficou de fora das restrições, como seria num livro de verdade. Fui conferir a publicação brasileira de La Disparition (traduzida como “O Sumiço”), e foi assim que eles fizeram também.
Tentei fazer o máximo para que, mesmo sem a letra O, o texto ficasse fluido e natural. Sei que não vou conseguir isso em todas as situações, mas, se você for ler, espero que tenha uma boa leitura, que ela seja fluida e que, em alguns momentos, seja possível esquecer que o texto foi escrito com uma restrição bem rígida.
Preface
In LocJAM 6, an Italian translator called Chiara Di Modica delivered some projects that were a little “different”. The coolest one, for me, was a rhymed translation. Unfortunately, with my Italian level, I can’t fully enjoy her translated game, but I thought it was a brilliant idea, and that inspired me to create a “different” project for this LocJAM Crime Story.
I didn’t want to make a rhymed translation, to copy the same idea, so I thought about using another type of writing restriction. I recalled a text (in Portuguese) that can be found on the internet, by an unknown author, with all the words starting with the letter P (“Pedro Paulo Pereira Pinto, pequeno pintor português, pintava portas, paredes, portais [...]”). But I thought that, regardless of the chosen letter, it would be almost impossible, since I will not make a 100% original text, I will be “limited” to the original story.
Then I recalled “La Disparition”, by Georges Perec, first published in 1969. Surprisingly, it’s also a detective/investigative story. The first time I heard about this book was at an event from the Brazilian Association of Translators and Interpreters (ABRATES). The author wrote a whole book with a very difficult restriction: he didn’t use the letter E, the most frequent in the French language. The book was translated into several languages, and some translators kept the E restriction, and others changed to other vowels, like A or O. The Brazilian translation, by Zéfere (José Roberto Andrade Féres), published in 2021, also chooses the letter E.
Ok, I chose my restriction. Now I need to choose the vowel I will eliminate. After analyzing some possibilities and words I would “lose”, I decided on the letter E, like Georges Perec and Zéfere. But, when the original text for the LocJam was released, I had my first challenge. The text was called “The Extraordinary Adventures of Arsène Lupin, Gentleman-burglar” (I have translated it from English), an investigative literature classic. The thing is: there are two Es in the character’s name.
I tried to start the translation without the E, and the adventures became unusual (“fora do comum”), instead of extraordinary (“extraordinárias”), and the character was Arnauld Lupin now. But it bothered me a lot the fact of changing the name of such an important character, a classic from the world literature. Then, I decided to restart the translation and choose the letter O, the only vowel not present in Arsène Lupin. The extraordinary adventures, that had become unusual, are now incredible (“incríveis”).
It was very difficult, good thing that LocJAM gave us a longer deadline this time. On LocJAM 6, there were 4 days to translate about 3,500 words, and now there were 14 days for around 4,500 words. I would probably not be able to finish it in only 4 days. Just for the translation, I took 8 days, and I am not considering the review, implementation, etc.
The challenges of writing a text without the letter O are huge. From the start, I already lost several words: você, pessoa, homem, ladrão, roubar, porque, por, o, do, pois, porém, portanto, então, depois, tempo, hora, ano, dois (you, person, man, burglar, to steal, because, to, masculine the, masculine of, for, however, therefore, so, after, time, hour, year, two), etc. I have also lost most of the masculine nouns and adjectives. It was hard to find a translation for the “gentleman-cabrioleur”, the way people call Arsène Lupin. I couldn’t use words like ladrão, larápio, bandido, gatuno, criminoso (variations of thief/criminal)... And most of the story happens on a ship, but I couldn’t write barco, navio, cruzeiro, embarcação, transatlântico, veículo, transporte (variations of boat, ship, transport), etc.
I had to find a solution to all those challenges. Sometimes, an unusual word. In other situations, I rebuilt the sentence, wrote the same thing in another way, tried to modulate other points of view. I have used different types of solutions. I wasn’t totally satisfied with all of them, but I did the best I could.
The verbal tenses were another problem. I lost the first-person singular of the present (indicative), all the participles, and many other conjugations. For the third-person singular of several verbs, that would use the letter O, my solution was to use the second-person and treat everyone as “tu”. This way, “falou”, for example, becomes “falaste”, and I solve this particular problem.
Several proper nouns were difficult as well, but I wasn’t bothered about changing them, since they were not so iconic. I was glad that I didn’t have to change Ganimard, and I used this opportunity to make some wordplay with the original names. Then, Rivolta became Rivai, Rozaline was changed to Azuline, Miss Nelly Underdown was lady Nelly Underup. Major Rawson was promoted to General Rawfather. And Marquis de Raverdan was transferred to Rakerdan, just so I could use all the letters (except O).
This project was only possible because I had this level of freedom, not only to translate, but to transcreate the original text, which was part of the contest premise. So, Arsène Lupin didn’t disguise himself as a Russian physician (“médico russo”) or a Spanish bull-fighter (“toureiro espanhol”), but as an English dentist (“dentista inglês”) or a Belgian athlete (“atleta belga”). The suspects were not thirteen (“treze”), with nine (“nove”) removed from the list, but seventeen (“dezessete”), with thirteen (“treze”) being removed (yes, I also haven’t used any Os in numbers). Baron (“barão”) Schormann was now Duke (“duque”) Schermann, Nelly was going to New Jersey, not Chicago, and Azuline was not the son of a wealthy merchant of Bordeaux, but from a rich family from Lille.
In the end, I think it’s funny that the restrictions made me write less and reduce some scenes, summarizing the text. The “usual” for a translation from English into Portuguese is to increase the size of the text (characters and words), but my translation had only about 80% of the original size. And the letter O was the only absent one. Only for comparison, the final text had some Ks (3), Ws (4), and Ys (59), the least frequent letters in Portuguese.
The restrictions were considered only for the text and the title. All the “publisher part” at the beginning was out of the restrictions, as it would be in a real book. I have checked the Brazilian publication of La Disparition (translated as “O Sumiço”), and it was like this as well.
I tried my best to make the text fluent and natural even without the letter O. I know I will not achieve this in all situations, but, if you read it, I hope you have a good reading experience and, sometimes, forget the fact that the text was written with such a strict restriction.
Status | Released |
Category | Book |
Author | Lucas Rodrigues Oliveira |
Comments
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Parabéns pela tradução usando essa restrição. Ficou fantástico!
Essa restrição autoimposta é um desafio enorme que deixou a tradução mais do que primorosa: corajosa.
Que incrível, Lucas! Uma tradução totalmente autêntica e muito criativa. Parabéns! Adorei.